Nos Caminhos da Nova China
autor: Pedro Guimarães autor convidado

Nos Caminhos da Nova China

Hong-Kong, 19 horas locais do dia 8 de Julho de 2004. Acabo de desembarcar no Aeroporto Internacional, onde sou imediatamente forçado a passar pelos scanners que registam a minha imagem térmica. Recordo-me de que vivemos os dias das doenças que surgem de repente, vindas do nada, ameaçando repentinamente milhões de seres humanos. A imagem térmica dos passageiros servirá para determinar quem são os que caminham em estado febril. Quem estiver ?quente? terá de se sujeitar a exames médicos. A Ásia encontra-se a braços com novos surtos de ?febre das aves? e ?pneumonia atípica?. O azulado do meu rosto, assim representado no monitor de infra-vermelhos, indica que tudo deve estar bem. Continuo.

Chego então ao coração desta outra China, a que chineses de Hong-Kong orgulhosamente insistem em referir como ?S.A.R.? ou Special Administrative Region. Em poucas palavras: um país autónomo dentro de outro. Território chinês, administração local, independente. Pelo menos para já. Para alguém como eu, português, europeíssimo, de gema, habituado ao relativo provincianismo das pequenas cidades do velho continente, o choque visual é imediato e inevitável. Arranha-céus tão compactos que na perspectiva contra-picada quase eclipsam o céu por cima de mim. Poluição e humidade tais que me obrigam a aliviar a pressão das alças da mochila para conseguir respirar.

Esmagado pelo cenário caótico, sinto necessidade de me sentar um pouco. Escolho as escadas mais próximas, onde me imobilizo e tento orientar-me: recapitular as razões que me fizeram vir aqui parar. No dia anterior o mundo era para mim radicalmente diferente. Antes que o meu cérebro enganado pelo jet-lag conseguisse chegar a alguma conclusão, já um ser fardado me informava educadamente de que não podia permanecer ali. Estava no hall do edifício de um banco importantíssimo, para gente riquíssima e asséptica, pelo que não podia manchar a paisagem. Desvio-me uns metros para o lado, invadindo o banco de jardim de um banco ?ainda mais importantíssimo?, pelo que uma farda quase igual, de um azul quase diferente me deu igual tratamento. Cansado, confuso, resolvo descansar de pé, encostado a um poste que se afirmava como único mobiliário urbano. Só mais tarde descubro que no coração de HK o lugar dos peões não é nos passeios ao lado das ruas, mas antes nos infinitos corredores e passagens aéreas que interligam os abundantes edifícios institucionais, shoppings e plazas deste pequeno pedaço de terra. Respiro fundo e penso que não sou o único estrangeiro nesta cidade. Dirijo-me a um táxi e aponto no mapa do meu guia o sítio onde espero arranjar uma cama para repousar um corpo em estado de confusão. Durante o curto passeio nocturno admiro-me com os grupos de idosos que praticam Tai-Chi no meio de um opressivo mar de betão, criando uma imagem ironicamente cómica. No fim da corrida encontro a sorte que está sempre do lado dos viajantes sem reservas de hotel. Arranjo uma cama a preço de saldo, com vista do alto para a impressionante selva de arranha-céus, barcos de pesca e cargueiros que rondam a ilha.

Dias depois, no colossal edifício do Ministério dos Negócios Estrangeiros da RPC obtenho o visto de turista que me permitirá entrar na República Popular da China e aí permanecer durante 30 dias. Nesse mesmo edifício, situado numa das principais artérias de HK, deparo-me com algo que só mais tarde viria a compreender. Em dois pisos de dimensões comparáveis a um hiper-mercado, estão à venda, numa mistura de loja e museu, alguns objectos oriundos das várias dinastias. Entre mobiliário de luxo, esculturas colossais em marfim e vestuário de seda de primeira qualidade, encontram-se verdadeiros tesouros à venda. Por preços que se podem considerar irrisórios qualquer mortal pode comprar o recheio deste suposto ?museu?. Porque estaria a China a desfazer-se, assim, dos tesouros do seu passado ? E quem são os clientes deste negócio ? Olhando em volta e falando com os funcionários do museu, a resposta torna-se simples: a China quer enriquecer a todo o custo e os coleccionadores ocidentais e proprietários dos grandes hotéis locais não desperdiçam a oportunidade. Vender a preços de saldo os testemunhos do passado pode ser uma maneira mas, como vim a observar mais tarde, é principalmente com a destruição ambiental que a China engorda a sua economia a uma média de 8% ao ano.

Já com o visto na mão, entro na China, via Macau. A minha permanência de dois dias nesta terra que já foi lusa deixa-me algo decepcionado. Não que estivesse à espera de encontrar uma China aportuguesada, nem gente a falar português nas ruas. Contudo o que vi foi algo demasiadamente desprovido de identidade. Os grandes edifícios espelhados e casas de jogo vão avançando na paisagem dando lugar ao inevitável: um mar de betão e bairros decadentes. Hong-Kong já me tinha deixado a impressão de que os seus habitantes não mostram qualquer interesse pela herança cultural e arquitectónica. Julgo que Macau não é excepção. Aqui derrubam-se as marcas da ocupação colonial, como quem faz uma lobotomia. Algumas igrejas de culto católico ( ou o que resta delas ), uma livraria portuguesa, uns quantos restaurantes portugueses e alguns edifícios governamentais e associativos parecem ser o que sobrou da paisagem lusa. No entanto, a língua portuguesa, que ninguém parece falar ou perceber, é ainda a oficial. As fachadas das lojas exibem em dois idiomas o nome do negócio. Nas ruas, os sinais de trânsito são os mesmos de Portugal, com indicações em português e tradução em chinês. Os nomes das ruas aparecem também em inscrições bilingues, embora, no caso, o nome chinês não resulte de tradução. E os carros da polícia têm escrito nas portas... ?Polícia?.

Por certo que os viajantes portugueses que já passaram um pouco mais além da fronteira de Espanha com França se devem ter apercebido de que o nosso maior embaixador por este planeta dá pelo nome de Figo, mais conhecido nestas paragens por ?Pigu?. Pois aqui o Sr. Luís Figo compete em popularidade com o bacalhau, o prato mais conhecido dos muitos e ?exóticos? restaurantes portugueses. E pelo que tenho lido na imprensa, o famoso pastel de nata aspira ao mesmo estatuto. No meio de tudo isto imagino como será viver numa cidade que dá abrigo a uma língua que quase ninguém percebe. Um professor universitário chinês, do qual não agarrei o nome, aborda o assunto no canal macaense da RTP explicando que é como quem congela um dialecto, que está ali guardado e pode dar jeito quando a China decidir abordar o gigantesco mercado brasileiro e africano. Não fosse o português uma das línguas mais faladas no mundo.

Resolvi ir à China com objectivos não muito definidos. Não o fiz por lazer. Talvez por curiosidade. Acredito que os chineses estejam a passar por algo histórico, uma revolução gigantesca e estranhamente silenciosa, quase sem rosto. O absurdo crescimento económico, que já retirou 20% dos 1,3 biliões de chineses do limiar mínimo de pobreza, assemelha-se a um milagre com contornos malignos. A questão a que até agora ninguém parece saber responder é saber qual o futuro desta nova China. Será o reverso da medalha uma catástrofe ecológica e humana sem precedentes na História ? Julgo que até agora nenhum povo levou a este extremo a questão do desenvolvimento sustentável. Sem dúvida que a rápida abertura económica permitiu a muitos dos chineses aspirar a um estilo de vida materialmente supérfluo. Não deixa de ser curioso fazer o exercício proposto pela edição de Maio da revista National Geographic, onde o leitor tenta imaginar como seria o mundo se fosse possível aos chineses adoptar um estilo de vida equivalente ao dos cidadãos dos Estados Unidos. Segundo a mesma revista seriam necessários os recursos de três planetas. Compreender o fenómeno chinês parece ser um importante passo para entender melhor a própria humanidade.

A abertura da China ao capital estrangeiro e à iniciativa privada tem contribuído para uma crescente tolerância em relação às questões da liberdade individual. No entanto parece-me óbvio que ainda muito está por acontecer, se tivermos como referência o mundo ocidental. O primeiro contacto directo com esta realidade ocorreu quando me vi forçado a recorrer aos serviços de um condutor de riquexó, cidade de Xi?An. Por entre pedaladas, o triste senhor contava-me num inglês quase perfeito os tempos em que era professor assistente na Universidade de Pequim. Durante um período próspero da sua vida, em que trabalhava para se ?alistar? na diminuta classe média chinesa, a sua mulher viu-se acidentalmente grávida do seu segundo filho. Recusando a hipótese que o governo lhe oferecera para abortar, o castigo por insistir em ter mais do que um filho não se fez tardar: ambos teriam que abdicar definitivamente das suas carreiras profissionais. Sem capacidade financeira para pagar as elevadas taxas que permitem substituir o castigo, a família viu-se subitamente obrigada a sobreviver nas ruas, sem acesso a um emprego legal. Bastante comum, este caso dramático espelha uma das diferenças abismais em relação à cultura ocidental: o uso, puramente pragmático, do aborto como ferramenta de controlo populacional.

No que toca ao acesso à informação, o panorama também não é dos melhores. A totalidade dos órgãos de comunicação social permanecem sob a tutela e orientação do estado. Os canais televisivos funcionam ainda como um gigantesco sistema de educação nacional. Assistindo-se diariamente à programação televisiva, é fácil ter a sensação de que o telespectador é tratado como uma criança. Programas quase infinitos mostram como se reproduz o bicho da seda, quase à velocidade do próprio. Telenovelas de qualidade duvidosa reproduzem artificialmente a China ancestral. Nos telejornais o resto do mundo parece não existir, com excepção para a cobertura de temas incontornáveis, como a guerra do Iraque ou o 11 de Setembro. E talvez um atentado aqui ou ali. A imprensa jornalística parece não andar muito longe da manutenção desta cegueira colectiva, onde apenas se consome produto interno. As bancas de revistas apenas contemplam títulos que não podem, de forma alguma, deixar florescer ideias próprias. Moda, armamento, tunning automóvel e outras futilidades são os temas. No mercado livreiro, tudo o que não é romance parece ter sido assinado por algum general, pelo que posso deduzir das fotografias dos autores dos livros. Estranhamente, os hábitos de leitura chineses passam muito por temas ligados à vida militar e política. Quanto à imprensa estrangeira, como seria de esperar, ou não existe ou é extremamente inacessível.

Outro curioso fenómeno é o da Internet. A China possui já uma extensa e completa rede de acesso à Internet. Os cyber-cafés estão um pouco por todo o lado desde as pequenas às grandes cidades, com custos perfeitamente acessíveis. No entanto, os muitos jovens chineses que os usam parecem ainda não lhes ter descoberto outra função senão a dos jogos em rede. Por vezes torna-se difícil distinguir entre um salão de jogos e um cyber-café. Embora sites como o da BBC online estejam com o acesso bloqueado, não me pareceu difícil encontrar alternativas para o acesso às várias outras fontes de informação, com conteúdos não censurados. Os chineses, pelo menos os da nova geração, já não podem justificar a sua ignorância em relação ao mundo exterior com a inacessibilidade da informação. No entanto, ainda que a situação esteja a evoluir rapidamente, a falta de domínio da língua inglesa e a familiarização com os caracteres romanos parece representar o maior obstáculo no acesso à informação, mais do que qualquer censura.

A quem julga pertencer a um sistema de políticas mais favoráveis, muito mais haveria para dizer. Os crimes ambientais e o total desrespeito pelo equilíbrio ecológico dariam infindáveis temas de debate. As cidades chinesas facilmente se confundem com gigantescos estaleiros de obras, em permanente construção. ?Quando vejo no telejornal imagens da Europa, o céu está sempre azul? - diz-me um acidental companheiro de viagem chinês. Respondo-lhe que quando se vive permanentemente debaixo de uma pesada cortina de smog, sob a obsessão de criar riqueza, o nosso mais que imperfeito Ocidente pode parecer o paraíso. ?Laundry?, como gostava de ser chamado, 19 anos, filho de um bancário e de uma agente de marketing numa tabaqueira, confessou-me que havia partido em passeio pelo seu país para poder encontrar viajantes ocidentais com os quais pudesse praticar inglês e tentar saber alguma coisa sobre outros modos de pensar, como quem procura uma orientação para a própria vida. Os 2000 Yuan (cerca de 200 Euro) que cada um dos seus pais ganhavam por mês, permitiam-lhe dar-se a esse luxo durante as férias da universidade. ?Laundry? é um dos muitos chineses da nova geração que se assume como indivíduo, querendo saber qual o seu lugar no meio da multidão. A sua busca, ainda que cega, pode ser um primeiro passo.

O progressivo afrouxar das ?rédeas? do governo sobre o seu povo e o crescente poder económico está a permitir a emergência de uma geração inconformada, capaz de exibir algum descontentamento. No entanto, esse mesmo inconformismo mistura-se com uma ignorância quase total em relação ao mundo exterior. Sem referências, bons ou maus exemplos, alguns jovens chineses tentam desesperadamente encontrar um caminho cujo sentido é, para já, obscuro. Muitas vezes me abordaram na rua, com uma curiosidade quase incomodativa, questionando-me sobre essa liberdade inimaginável de quem viaja sem destino, com uma mochila às costas e uma câmara fotográfica ao pescoço. E que país distante era o meu que ninguém conseguia imaginar como seria ? Como simples viajante e fotojornalista em início de carreira apenas pude dar respostas quase vazias. Várias vezes, em vão, ofereci a hospitalidade do meu país.

Pedro Guimarães Julho de 2004